quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Minuto 90: Campeão de xadrez recorre ao Governo




A edição em papel do diário desportivo Record publicou, hoje, um brevíssimo apontamento sobre xadrez. Infelizmente não é sobre o Campeonato do Mundo Sub-18, em que participam dois xadrezistas portugueses, nem sobre o Match de atribuição do título de Campeão Mundial Absoluto, tratando-se, antes, de mais um desenvolvimento no atribulado processo de preparação da representação nacional nas Olimpíadas de Dresden, no próximo mês. A notícia é sobre a exposição que o GM António Fernandes apresentou ao Dr. Laurentino Dias, Secretário de Estado da Juventude e do Desporto.

A peça ficou para as últimas páginas do jornal, precisamente numa secção que se chama "Minuto 90". O que tem o seu quê de curioso: no xadrez, a partida começa, não termina, no minuto 90. E o GM António Fernandes tem dito que o recurso ao tribunal é uma possibilidade...

A redacção publicada é, na íntegra, esta: "O campeão nacional absoluto, António Fernandes, recorreu para o secretário de Estado do Desporto por ter sido excluído da Selecção para as Olimpíadas".

Esta notícia resume a que foi publicada na edição electrónica do jornal - disponível aqui - em que são apresentados os factos já amplamente divulgados e posições recorrentemente esgrimidas. Há algumas imprecisões, habituais no jornalismo actual (como se costuma dizer, "só quem nunca leu nada sobre algo que conhece é que acredita em tudo o que vem escrito na imprensa"), nada de muito especial quanto ao que realmente importa (até porque muitas vezes o problema parece ser das fontes), sendo a principal novidade o facto de o GM António Fernandes ter feito uma exposição ao Senhor Secretário de Estado da Juventude e Desporto, embora não se saiba, ao certo, porquê e para quê. A versão electrónica apenas refere um "recurso" em que se "expõe" a "exclusão da selecção nacional".

Alguns pontos para enquadrar/problematizar a questão:

1. A Federação Portuguesa de Xadrez, uma vez que é dotada de utilidade pública desportiva, está inserida na administração pública autónoma.

2. O Governo é o órgão superior da administração pública (art. 182.º da Constituição da República), sendo constituído pelo Primeiro-Ministro, pelos Ministros e pelos Secretários e Subsecretários de Estado (art. 183.º, n.º 1, da CRP.)

3. Ao Governo compete exercer a tutela sobre a administração autónoma (art. 199.º, d), da CRP).

4. A tutela consiste "no conjunto de poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública [no caso, o Estado] na gestão de outra pessoa colectiva [a FPX], a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação", podendo, quanto ao conteúdo ser configurada como tutela inspectiva (faculdade de inspeccionar o financiamento e a actuação da entidade tutelada), tutela sancionatória (faculdade de aplicar sanções por preterição da legalidade ou mérito da actuação), tutela revogatória (faculdade de revogar actos praticados pela entidade tutelada) ou tutela substitutiva (faculdade de suprir as omissões da entidade tutelada, praticando os actos legalmente devidos) - cfr. o Curso de Direito Administrativo do Prof. Freitas do Amaral.

5. Aquele artigo 199.º, alínea d), não é uma norma de atribuição de competência, pelo que o Governo só pode exercer poderes de tutela no âmbito previsto pela lei. O Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade publica desportiva, determina que - artigo 10.º - "a fiscalização pela Administração Pública do exercício de poderes públicos e da utilização de dinheiros públicos é efectuada, nos termos da lei, mediante a realização de inspecções, inquéritos e sindicâncias".

6. O GM António Fernandes dirigiu-se ao Secretário de Estado da Juventude e do Desporto por, provavelmente, tal tutela ter passado para a competência deste, através de vários despachos de delegação e subdelegação de poderes. (A Lei Orgânica da Presidência do Conselho de Ministros, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 202/2006, de 27 de Outubro, estatui - artigo 22.º, n.º 2, alínea f) - que é atribuição do Instituto do Desporto de Portugal "proceder a actividades de fiscalização".)

7. Se no âmbito desportivo não houver tutela revogatória ou substitutiva, não vai ser nesta sede que o GM António Fernandes vai ver a sua situação resolvida. E ainda que haja competência, provavelmente não haverá tempo útil - a competição começa no próximo dia 12 e não é líquido que, nesta altura, ainda possam ser alterados os convocados.

8. Se a tutela for inspectiva e sancionatória, o que acontecerá (apesar de eu não ter encontrado a norma que a prevê) se esta notícia do jornal Destak for fidedigna, "na sequência de um inquérito que confirm[e] a ilegalidade da situação, a [Federação pode ser] advertida a cumprir a legislação em vigor - além de [poderem ser] suspendidos [alguns] apoios financeiros (...). Caso a federação «persista sistematicamente» neste tipo de atitudes, a Secretaria de Estado do Desporto [pode equacionar] retirar-lhe o estatuto de utilidade pública".

9. Se se concluir que a FPX não actuou bem ao não convocar o GM António Fernandes, à míngua de tempo útil para o levar às Olimpíadas (e para aquele deduzir uma acção de condenação à prática de acto devido), não sendo possível esta "reparação natural", o advogado do xadrezista - que, segundo o Record, "está a estudar todas as possibilidades" - pode equacionar recorrer à via indemnizatória, no tribunal.

10. A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, prevê, entre outras, a responsabilidade civil extra-contratual das entidades públicas por danos resultantes do exercício da função administrativa, correspondendo ao exercício desta função as omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público - artigo 1.º, n.ºs 1 e 2. Em traços muito largos, as pessoas colectivas públicas são responsáveis pelos danos que resultem de omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício - artigo 7.º, n.º 1.
Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes que violem disposições regulamentares ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos - artigo 9.º, n.º 1.
Por outro lado - artigo 10.º -, a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, nas circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor - n.º1 -, sendo que, para além dos casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância - n.º 3.
Finalmente - artigo 4.º -, quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Alguém consegue clarificar o objectivo ou as consequências deste procedimento iniciado pelo GM António Fernandes ou apontar eventuais erros nestes pontos?

3 comentários:

Anónimo disse...

Bem, eu, ao contrário do autor deste blog, não sou um especialista em direito mas, em questões de português, quando estou em dificuldades, costumo consultar o dicionário. O dicionário online Infopédia, para a palavra Recurso tem mais do que um significado:
RECURSO
nome masculino
1. acto ou efeito de recorrer, de procurar auxílio ou socorro
2. protecção; refúgio, abrigo
3. meio para resolver um problema, remédio, solução
4. meio para atingir um fim, expediente
5. meio expressivo de uma língua
6. DIREITO impugnação de uma decisão junto de um órgão diferente daquele que a emitiu
7. DIREITO pedido de reponderação sobre uma decisão judicial apresentado a um órgão superior
8. [plural] meios humanos e/ou materiais
9. [plural] capacidades
10. [plural] meios de fortuna, bens, haveres;
recursos humanos disciplina que se dedica ao estudo dos modelos de organização interna do trabalho no âmbito das empresas, analisando e apoiando a aplicação de instrumentos e políticas de gestão das pessoas que as integram;
recursos naturais substâncias ou materiais encontrados na natureza, potencialmente úteis como fontes de riqueza para o homem;
em último recurso em último caso, como solução final

(Do lat. recursu-, «corrida para trás; recurso»)

Fiquei também com a impressão que o dono deste blog é de opinião que o Campeão Nacional deveria comer e calar. Será impressão minha?

Tiago F. Pinho disse...

Peão de Brega, não percebi onde quis chegar.

"Recurso" é uma palavra polissémica, de acordo. E então? Creio que uma coisa são sinónimos, outra, bem diferente, é a técnica e a interpretação jurídica. O GM António Fernandes também apresentou uma "contestação", que provavelmente deve ser encarada como um recurso, contra a primeira decisão da FPX. Mas não recebeu qualquer resposta (nem estranho que não a venha a receber), pois esta não lhe é devida... Pelo menos não encontrei em nenhum lado aquela possibilidade de contestar/recorrer/ou qualquer outro sinónimo...

A Secretaria de Estado vai analisar a exposição/recurso à luz do direito e não do português, sendo relevante o que o papel que lhe foi entregue diz e não o que vem escrito no jornal. Daí a minha desconfiança quanto à notícia, para efeito de equacionar o que poderá acontecer a seguir.

Mas se com o seu comentário se referia, antes, aos "problemas da fonte" ou às "imprecisões", nenhum órgão exerce, por exemplo, poder hierárquico sobre a direcção da FPX, e a questão da «reunião de capitães» parece estar ultrapassada: a mesma notícia que é citada para demonstrar que o prazo válido para indicar os jogadores é 12 de Setembro, diz também, salvo erro, que é substituído o regime anterios (a tal reunião de capitães).


Quanto à sua impressão e ao seu "come e cala", a minha opinião está expressa em vários posts deste blogue. Se estiver interessado em superar a incerteza, pode reler este post - especialmente os pontos 9 e 10 - e ler os restantes em http://xadrezvigoroso.blogspot.com/search/label/ol%C3%ADmpiadas

Tiago F. Pinho disse...

Parece que a tutela sobre a FPX não é efectuada pelo Secretário de Estado mas pelo Instituto de Desporto - http://xadrezvigoroso.blogspot.com/2008/11/faltam-2-dias.html - já que aquele (provavelmente por se considerar incompetente) remeteu o caso para este.